27/01/2013

.Maïmouna, a menina que engoliu os gritos mais depressa do que a saliva

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Maïmouna não cabe em si de contente, porque vai passar um dia de sol com as amigas. Contudo, por vezes, a escuridão persegue a inocência e dá origem a um sofrimento silencioso. Este livro aborda a questão da excisão com pudor, através da expressão comovente dos sentimentos das pequenas vítimas, que irão lutar por um futuro mais digno e sereno.
Naquela manhã de céu azul e terra vermelha, Maïmouna acordou, depois de uma noite bem dormida. O céu não podia estar mais belo e a menina esqueceu os sonhos que tinha tido. Vestiu a túnica nova que a mãe lhe tinha oferecido e que parecia acariciá-la da cabeça aos pés. Era uma túnica de flores vermelhas. Saiu da cubata, atravessou o pátio e caminhou pela aldeia, ouvindo os seus próprios passos.

03/01/2013

O prémio

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Todos nós somos extensões de Deus,
levando a Sua luz e o Seu canto até aos lugares escuros
e vazios do nosso mundo.
Roberta L. Messner

          Já quase me estava a arrepender da promessa feita à Srª Saunders, a coordenadora da venda de caridade do Natal: “Quer oferecer o prémio para o sorteio de rifas deste ano, minha querida?” perguntou ela persuasivamente. “Nada como um maravilhoso prémio para atrair compradores a uma venda de caridade.”
           Apenas a três semanas do Natal, a tarefa ainda por concluir pesava-me na consciência como um ramo de árvore quebrado pelo frio. Queria fazer algo realmente especial, mas agora, na véspera da venda de caridade, sentada na mesa da cozinha, faltava-me a inspiração.

31/12/2012

Conto de Natal

História de um menino que há de nascer… 
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               Será uma vez, daqui a muitos, muitos anos, um menino que tinha tudo para ser feliz (segundo os cânones da época que há de vir…): uma mãe biológica e afetiva, um pai de substituição que só um olho clínico conseguiria distinguir de um pai verdadeiro, uma EV (Escola Virtual) de última geração e um E-Mind potentíssimo.
               À noite, o pai do menino, paciente e dedicado como nenhum outro, procurava, na maior parte das vezes sem sucesso, convencê-lo o pôr o capacete E-Mind. Explicava-lhe que era importante ter um futuro garantido, que o E-Mind o iria ajudar a obedecer sempre ao CC (Computador Central), permitir-lhe-ia pensar de acordo com os objetivos estabelecidos e desencorajaria perguntas sem sentido. E, muito importante!, só com uma mente assim treinada e comandada, poderia usufruir, quando fosse grande, do TT (teletransporte), também controlado pelo CC.
               E o menino resistia, amuava, chorando até. E tudo porque, desde que apanhara, sem que tal devesse ter acontecido, partes de uma conversa entre o pai e a mãe acerca de livros, e-books e histórias que os pais contavam aos filhos em épocas longínquas, não parava de fazer perguntas.
O que era um e-book e um livro; o que era uma história; que era isso de os pais contarem histórias aos filhos. E tinha chegado ao cúmulo de sugerir que lhe contassem, também a ele, uma história, por lhe parecer ser uma coisa boa.
               Os pais ficavam cada vez mais preocupados com estes comportamentos desviantes da criança. E eram exemplares, aqueles pais! O que os angustiava era saberem que aquele perfil do rebento não augurava nada de bom. Se o CC suspeitasse, com a sua potente neuromemória, nem que fosse em sonhos, do que se estava a passar, a ação seria imediata: criança retirada aos pais, reformatada e colocada em regime de internato numa EV especial. Mas não seria tudo, infelizmente. Havendo vestígios, por mínimos que fossem, após a aplicação do PAC (Plano de Ação Corretiva), dos comportamentos antirregulamentares, seria o próprio CC a dar o clique que enviaria aquele elo problemático para a RSR (Reciclagem Sem Retorno).
               Havia, apesar de tudo, uma réstia de esperança. Circulava no MNP (Mercado Negro Planetário) um novo produto que prometia pôr na linha a mais rebelde das crianças. O Don’t Worry era um microchip, assumia-se como uma verdadeira alternativa ao E-Mind e prometia maravilhas em letras fluorescentes subliminares: “Doma a mais indomável da vontades!”
               O produto estava incorporado nas memórias-sabores que as crianças mais apreciavam: araçá, pitanga, medronho e mirtilho. Era engolido, como se de uma guloseima se tratasse, e já estava! Quanto a efeitos secundários, nada se sabia. Seria sempre um desesperado “tiro no escuro”…
               Naquela noite, tudo seria diferente. X72y, o menino da nossa história, não foi obrigado a pôr o capacete e pôde fazer perguntas e mais perguntas. E mesmo sem obter qualquer resposta, parecia feliz naquele corpo franzino, de olhos brilhantes e pele translúcida. Pulava, dava beijinhos à mãe, que era biológica mas também afetiva, fazia miminhos ao pai, de substituição mas tal qual um verdadeiro. E ria, ria muito.
               A mãe, com o coração afectivo partido, chamou-o:
               -- X72y, meu fofinho, vem à mamã BA (Biológica e Afetiva)! Sabias que és o Y mais querido que há na Galáxia, sabias? – E dava-lhe beijinhos doces, fazia-lhe cócegas e fazia brrr brrr com a boca na barriguinha frágil.
               Numa época passada há muito, seria certamente a imagem de uma família feliz…
               -- A mãezinha tem um e-doce! E para quem é?
               -- Hham, nham! Que bom! Que bom! Araçá, pleeeease! – O inglês será neste futuro longínquo a única língua oficial, aprendida desde a incubadora por todas as crianças, sob a supervisão atenta do CC.
               -- Acertaste, fofinho! – Dizia a mãe de forma quase sincera, não fora o logro a que iria sujeitar o seu pequeno e indefeso X72y.
               A criança engoliu sofregamente o microship com forma de araçá vermelho (muito mais apreciado do que o amarelo), sentindo vividamente a memória da frescura ligeiramente ácida daquele fruto extinto há muito.
               Poucos minutos depois, X72y entrou em letargia. E assim permaneceu, parado no espaço e no tempo, a alimentar as esperanças ansiosas dos pais.
               Aquela mãe biológica (e muito, mas mesmo muito afetiva) e aquele pai de substituição (insubstituível) só queriam que o seu menino fosse como os outros, que deixasse de os questionar, que ficasse dócil e que tudo corresse bem no dia do juramento de fidelidade perante o CC. Esperavam um renascimento, um verdadeiro milagre!
               Numa noite fria, no último dia do ciclo astral, lá estavam os progenitores, de mão dada (gesto censurado na época), a olhar o seu campeão (como o pai lhe chamava), suspenso na sua cadeirinha digital, com o ar frágil de sempre, desprotegido…
               -- Mãezinha…
               A mãe, mais afetiva do que nunca, estremeceu de ternura ao ouvir aquele apelo gemido. E dentro de si, a esperança ganhou espaço e preencheu-a. O seu homenzinho, como às vezes dizia, superara a provação e a vida seguiria o rumo esperado. Seria, como as outras, uma criança integrada, normal e com sucesso na vida. Aproximou-se da cadeirinha com o coração aliviado e olhou de perto aqueles olhinhos queridos, quase cedendo à tentação de os beijar. De repente, estremeceu. Pareceu-lhe reconhecer, naquele olhar, um certo brilho inquiridor… “Não é possível!”, pensava ela, desesperada, em alvoroço total.

               -- Mãezinha… O que é o Natal?
António Pereira
Espero que tenham gostado do meu primeiro conto. Emocionei-me ao escrevê-lo.